quinta-feira, 29 de março de 2012

Carlos Heitor Cony,9 de fevereiro de 1994

–Tomo Stendhal como exemplo: o desejo de ser invisível, ver sem ser visto. Em criança, eu me distraía assim, sobretudo depois que assisti "O Homem Invisível", com Claude Rains. Stendhal não viu o filme nem tomou conhecimento do livro de H. G. Wells, mas tentou ser invisível: adotou mais de 20 pseudônimos, com um deles ficando imortal.
Até na hora da morte, ao redigir seu epitáfio, ele procurou blefar inventando um novo nome e fazendo-se passar por milanês. Coisas de gênio.
Pois tive meu momento de Stendhal: no último domingo, vi o Millôr andando em Ipanema com sua cachorra (ou cachorro: à distância não dá para perceber, homens e cães são difíceis de identificação em tempos de bissexualidade e Carnaval).
Vi e não fui visto, pude saborear a cena: a cachorrinha de Millôr é branca, aristocrática, faz um gênero próximo ao das peruas, só que, em sendo cachorra, sendo perua é um charme suplementar. Caminha à frente, em verdade vos digo, não é Millôr quem leva a cachorra, é a cachorra que leva o Millôr.
Andam apressados, Millôr vai de cabeça baixa, concentrado e denso. A cachorra empina o focinho para curtir a própria glória, desfila como um destaque de escola de samba, sabe que provoca admiração e pasmo, branca e fofa como um doce de açúcar, as perninhas ligeiras puxando o submisso dono que a segue.
Depois de tanta vida e tanta luta, como a Marta do Evangelho, Millôr escolheu a melhor parte. Nada de ir atrás dos outros na arte, na política, no complicado ofício de viver. O mais sábio é não ser liderado por ningém e nada, seguir ou perseguir um pedaço doce de açúcar, nacarado e fofo, fragilidade que desmancha na boca.
Comecei a crônica com Stendhal. O lugar-comum das citações literárias remeteria ao início de um de seus romances, o personagem que assistiu a batalha de Waterloo e só mais tarde ficou sabendo que presenciara um acontecimento histórico. Eu poderia repetir o personagem de Stendhal, mas acho que tive esperteza bastante para guardar a memória de um domingo em Ipanema: eu vi o Millôr!

quarta-feira, 28 de março de 2012

Millôr Fernandes
‏ Viver com simplicidade, cada dia é mais complicado.

terça-feira, 27 de março de 2012

Carlos Heitor Cony

Simplesmente Chico

Impossível não escrever sobre Chico Anysio, apesar da compacta e mais que merecida cobertura que ele recebeu da mídia em geral e de seus admiradores, vale dizer, do Brasil inteiro. Impossível também destacar os comentários feitos por tanta gente entendida em sua vida e obra. Tenho para mim que a melhor observação foi a de Boni, um dos responsáveis pelo sucesso do Chico -evidente que depois do próprio Chico e do advento do videotaipe na TV.

Boni disse que preferia o grande ator como ator mesmo, "in natura", sem perucas e maquiagens, evitando a pele dos notáveis personagens que criou. Penso da mesma forma: o Chico de cara limpa e roupa comum era ao mesmo tempo o ator e autor de si mesmo. Paulo Francis costumava dizer que ele era o momento mais inteligente da nossa indústria de entretenimento.

Não o considero humorista, mas ator capaz de criar os personagens que admiramos. Dois deles sempre me deram inveja pela originalidade, perfeição e simplicidade da arquitetura cênica e literária: o Pantaleão e o Limoeiro.

Qualquer intérprete que componha um tipo com acessórios e textos adequados, fatalmente fará sucesso. Mas Pantaleão tem apenas uma cadeira de balanço, bem nordestina, um olho tapado e o outro olho, esperto, esse sim, uma criação de gênio. Não precisa de texto: o olho que lhe resta diz tudo, nem precisa do bordão ("É mentira, Terta?") para sabermos que ele não está mentindo, mas expressando um passado que ele criou e no qual acredita.

O coronel Limoeiro também evita acessórios, tem a limpeza de meios que contrasta com outros tipos que resvalam para a caricatura. O terno branco, o chapéu e o sotaque resultam num personagem que Graciliano Ramos, Zé Lins e Jorge Amado se esqueceram de ter criado.