sábado, 17 de outubro de 2009

Daniel Piza: Coda

Quando esta coluna começou, em 2004, o futebol brasileiro vivia um momento semelhante ao atual em muitos aspectos, mas diferente em outros. Eu já vinha escrevendo sobre futebol há muito tempo, na coluna cultural Sinopse, e tinha feito diários da Copa em 1998 e 2002, mas ter um espaço semanal próprio – nesta seção Boleiros, criada naquela reforma gráfica e editorial inaugurada em 17/10/2004 – era a chance de acompanhá-lo mais metodicamente. Afinal, observar o tema tinha me ensinado mais sobre a cultura brasileira do que estantes recheadas de livros. E não posso negar que assistir aos jogos, mesmo que se possa queixar tanto da queda geral de qualidade (como a última rodada do Brasileirão mais uma vez demonstrou), é o tal trabalho prazeroso – aquele que você pede para fazer em vez de lhe pedirem que faça.

Cinco anos depois, período que incluiu o lançamento de muitos documentários (de Pelé Eterno a 1977 - 23 Anos em 7 Segundos) e a fundação do Museu do Futebol (em 2008), o prazer só aumentou. Muita gente diz que futebol não é “im-por-tan-te”. Eu sempre digo: ainda bem! Aí se diz que ele aliena as pessoas, ocultando as mazelas sociais ou minando a energia que deveria combatê-las. Eu respondo: mas então ele deve ser importante, não? Para ter tamanho poder...

Acrescento rapidamente que é pelo mesmo motivo que não embarco nessa moda de intelectualizar o esporte, como se fosse um exemplo das virtudes raciais e/ou nacionais (à maneira de Nelson Rodrigues) e não apenas e eventualmente um campo de inspiração – ou, no pólo oposto, como se pudesse ser explicado por estatísticas de escasso teor científico. E que repudio esse tipo de torcida que se confunde com o irracionalismo na forma de religião e/ou violência. Os vândalos não gostam de futebol, ponto; gostam de descarregar suas frustrações no futebol. E essa diferença, para mim, é fundamental. Ficar de mau humor porque o time perdeu, ou dizer que o amor por um clube é maior que o amor por uma mulher, é ridículo.

Em 2004 o futebol brasileiro estava iniciando a fórmula dos pontos corridos. O Cruzeiro de Alex havia vencido no ano anterior, o Santos de Robinho venceria então. Comentaristas alojados na grande imprensa caíram de pau no sistema porque iria “tirar a emoção”. Hoje é raro ver alguém que não reconheça que ele aumenta o número de jogos decisivos em vez de diminuir. Já a outra lição dele, o profissionalismo exigido para que se premie a regularidade, tem sido aprendida por poucos – como o Palmeiras, não por acaso o atual líder, com o mais vitorioso técnico do período, Muricy Ramalho. O agora vice-líder São Paulo, ainda o menos mal administrado clube do país, foi três vezes vencedor pelos mesmos motivos.

Ter regularidade não necessariamente significa jogar feio, na base da força e da retranca,mas, antes, ter um equilíbrio entre os setores da equipe. As limitações técnicas vêm da carência de revelações, não da fórmula de disputa. Robinho foi a última digna de vibração, e mesmo assim ele jamais cumpriu o futuro que lhe colavam, o de novo Pelé; nunca ficou nem sequer entre os três melhores do mundo. Outro em quem grudaram o rótulo, Ronaldinho, foi de fato quem mais encheu nossos olhos no período, mas apenas por duas temporadas no Barcelona seguidas do fiasco na Alemanha, do qual até hoje não se reergueu. Eis outra lição que deveria ter sido aprendida: vamos conter os ímpetos, vamos usar expressões como “genialidade” com contenção.

Já a volta de Ronaldo ao Brasil serviu para mostrar que o futebol – o dele e o futebol propriamente dito – não é apenas velocidade de pernas, mas sobretudo de raciocínio. Que nos próximos cinco anos isto seja cada vez mais testemunhado.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Saude Mental

CONTARDO CALLIGARIS-Razão, crença e dúvida
Onde se manifesta a razão? Na arrogância de certezas absolutas ou na capacidade de duvidar?
MEU PRIMEIRO contato com a história que segue foi em junho passado, no blog de Richard Dawkins (www.richarddawkins.net, site que se autodenomina "um oásis de pensamento claro"). Dawkins é o evolucionista britânico que se tornou apóstolo do racionalismo ateu e cético, escrevendo, entre outros livros, o best-seller mundial "Deus - Um Delírio" (Companhia das Letras, 2007).Mas eis a história. Em 2002, na Austrália, o casal Sam, de origem indiana, perdeu a filha, Gloria, de nove meses. A menina, a partir do quarto mês, apresentou sintomas de eczema infantil, que é uma condição alérgica que afeta mais de 10% dos bebês e, geralmente, acalma-se ou some aos seis anos ou na adolescência. As causas do eczema infantil não são bem conhecidas; a medicina administra a condição da melhor maneira possível, esperando que passe. O problema é que o eczema (pele seca com prurido) dá uma vontade de se coçar à qual as crianças não resistem, e a pele, ferida, abre-se para qualquer infecção. Foi o que aconteceu com Gloria, que morreu de septicemia. Não foi falta de sorte: o pai de Gloria é homeopata e, em total acordo com a mulher, medicou a menina só com remédios homeopáticos (insuficientes na condição da menina). Isso até o fim, quando ela definhava pelas infecções internas e externas. Gloria foi levada a um hospital três dias antes de morrer: as bactérias já estavam destruindo suas córneas, e os médicos só puderam lhe administrar morfina para aliviar seu sofrimento. Os pais de Gloria foram presos, acusados de homicídio por negligência e, no fim de setembro, condenados pela Justiça australiana: o pai, a oito anos de prisão, a mãe, a cinco anos e quatro meses. Segundo o juiz, Peter Johnson, ambos os pais "faltaram gravemente com suas obrigações diante da filha": o marido pela "arrogância" de sua preferência pela homeopatia e a mulher pela excessiva "deferência" às decisões do marido. Os termos da decisão de Johnson são admiráveis. A obediência -ao marido, no caso-, seja qual for seu fundamento cultural, nunca é desculpa; ela pode ser, ao contrário, o próprio crime. E, sobretudo, o marido é condenado não por recorrer à homeopatia, mas pela "arrogância" que lhe permitiu perseverar em sua crença e em sua decisão diante do calvário pelo qual passava a menina. A sentença de Peter Johnson é, para mim, um modelo de racionalidade, porque estigmatiza a certeza independentemente do objeto de crença. Ou seja, o juiz não discute o bem fundado da autoridade do marido e, ainda menos, os méritos respectivos da homeopatia e da medicina alopática. Tampouco ele quer limitar a liberdade de opinião, garantida pela Constituição; a sentença penaliza apenas, por assim dizer, a rigidez. Se me coloco no lugar dos pais de Gloria, não consigo imaginar uma crença, por mais que ela possa ser crucial para mim, que resista à visão do corpinho de minha filha transformado numa ferida aberta e purulenta. Antes disso, eu (embora confiando, a princípio, na medicina alopática) já teria convocado não só os homeopatas (o que, aliás, seria uma banalidade, visto que a homeopatia é uma especialidade médica reconhecida) mas também todos os xamãs, feiticeiros e curandeiros que me parecessem minimamente confiáveis. E, é claro, embora agnóstico, eu rezaria, sem nenhuma vergonha e sem o sentimento de trair minhas "convicções", pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo que minha razão não alcança. Se fosse testemunha de Jeová, e minha filha precisasse de uma transfusão (que a religião proíbe), abriria imediatamente uma exceção. Mesma coisa se fosse cientologista, e minha filha precisasse de ajuda psiquiátrica. Sou volúvel e irracional? O fato é que tenho poucas crenças (provavelmente, nenhuma absoluta), e acontece que, para mim, a razão é uma prática concreta, específica: um jeito de pesar e decidir em cada momento da vida. O surpreendente é que, ao ler os comentários dos leitores no blog de Dawkins, os "racionalistas" parecem tão "rígidos" quanto o pai de Gloria. "A razão" (que eles confundem com uma visão aproximativa do estado atual da arte médica) é, para eles, um objeto de fé, uma crença pela qual facilmente condenariam os "infiéis" à fogueira. Com o juiz Johnson, pergunto: onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas ou na capacidade de duvidar?