terça-feira, 9 de junho de 2009

Final Feliz

Quarta, 27/ Maio/09 Por Sérgio Rizzo
O baile sobre o Manchester United na final da Liga dos Campeões, que fez o estádio Olímpico de Roma parecer o Nou Camp em noite de visitante inofensivo, foi apenas o segundo capítulo de uma história feliz que talvez atinja seu ápice em 2010, na África do Sul.
O início veio na Eurocopa de 2008, conquistada pela Espanha com um estilo de jogo seguro, refinado e agressivo. Posse de bola e armação de jogadas cabiam ao virtuoso meio-campo da equipe -- no qual pontificavam Xavi e Iniesta, os dois melhores em campo hoje, responsáveis pelas assistências para os gols de Eto’o e Messi.
Ao substituir Luis Aragonés no comando da seleção espanhola, Vicente Del Bosque continuou a investir nessa filosofia, que mantém a equipe com 100% de aproveitamento nas Eliminatórias para 2010 e uma longa invencibilidade que se estende há alguns anos.
O Barcelona treinado por Guardiola toca música muito semelhante, premiada com o triunfo de hoje. Um meio-campo de finíssimo trato alimenta um ataque mortífero, que fez 157 gols nas 61 partidas desta temporada histórica, coroada pela primeira tríplice coroa do clube - campeonato nacional, Copa do Rei e título europeu - e por exibições memoráveis, como os 6 x 2 no Real Madrid em pleno Santiago Bernabeu.
Para os admiradores do bom futebol, seria um presente ver a Copa de 2010 nas mãos de uma equipe que exiba essa combinação de talento, agressividade e competitividade. Por enquanto, a Espanha parece bem à frente das outras cinco ou seis seleções que aspiram ao título.
No confronto de hoje, a defesa desfalcada era a do Barcelona, sem Daniel Alves, Rafa Márquez e Abidal, mas foi a do Manchester, reconhecida pela solidez, que rateou logo na primeira situação mais aguda, e justamente em seu lado esquerdo, onde Vidic e Evra formam uma das melhores duplas da Europa.
O gol precoce de Eto’o fez o Manchester provar de seu próprio veneno, bem aplicado na segunda partida das semifinais contra o Arsenal, em Londres. Incrivelmente desestruturado pela abertura do placar, devido a razões psicológicas (alguns erros de passe foram bisonhos) e táticas (as opções de Alex Ferguson se mostraram infelizes), o tricampeão inglês não conseguiu se rearranjar em campo para enfrentar a inesperada desvantagem. A Uefa divulgou, antes da final, que as receitas desta edição da Liga dos Campeões somaram 820,5 milhões de euros; em respeito aos estatutos da entidade presidida por Michael Platini, 75% desse montante (até um limite de 530 milhões) são distribuídos entre os 32 times da fase de grupos, de acordo com a progressão de cada um na competição.
Curioso paradoxo: com essa opulência invejável, a Liga dos Campeões foi parar na sala de troféus do mais romântico dos grandes clubes europeus -- aquele cuja camisa não tem patrocínio (a Unicef, além de divulgada globalmente, recebe uma verba anual do Barcelona), que pertence aos sócios (e não a investidores), que prefere revelar jogadores (e se possível mantê-los em casa por toda a carreira), e que vive da profunda identidade cultural com sua região.

domingo, 7 de junho de 2009

O vidente

Por que gosto de futebol
fonte: O Estado de São Paulo
08 de julho de 2007
O comentário pode ser com um muxoxo, “Ah, futebol não tem importância”, e normalmente vem de alguém metido a intelectual, que também desdenha TV e MPB; só não sei como pode captar um pouco que seja da cultura de seu país, embora pretenda. Não que esses assuntos fiquem mais interessantes quando viram teses em nossas universidades, como têm virado. Mas não é disso que estou falando. Estou falando de João Cabral de Melo Neto escrever poema para Ademir da Guia, “ritmo morno (...) atando o mais irrequieto adversário”; de nosso maior dramaturgo, Nelson Rodrigues, ter sido cronista de futebol por tantos anos; de Chico Buarque compor canção para o tema ou então enfiá-lo em versos como “Quem que te mandou comprar conhaque/ Com o tíquete que te dei pro leite?/ Quieta, que eu quero ouvir Flamengo e River Plate”, com aliterações e rimas de craque.Se o futebol entra dessa forma no universo cultural, é porque é bem mais do que um evento de mídia ou afirmação da pátria. Sua atração vem do jogo em si. Arthur Nestrovski, crítico e músico, disse certa vez que tirava inspiração para sua escrita de uma “certa tensão” com que Falcão batia na bola. O poeta e cronista Paulo Mendes Campos dividiu os times em “épicos” (Flamengo), “clássicos” (Fluminense) e “imprevisíveis” (como o seu Botafogo). Isso tudo começou quando um grupinho de alunos de Cambridge teve a idéia de chutar uma bola num portal e intimou a turma ao lado para disputar uma partida. Por ser com os pés, o futebol é menos previsível, mais dramático, e se há mais erros do que em outros esportes também há mais beleza, pela força e pelo efeito que se podem imprimir na esfera, levando à mistura de combate e coreografia. Nenhum outro esporte se parece tanto com a vida – o heróico e o patético tão próximos, tão sujeitos às contingências de uma narrativa que se reinventa por 90 minutos. Por isso nenhum outro se presta tanto às vicissitudes da opinião. Nelson, que está sendo homenageado na Flip e tem o famoso texto sobre o “complexo de vira-lata” incluído na antologia As Cem Melhores Crônicas Brasileiras (Objetiva), assim como seu irmão Mário Filho – cujo estilo influenciou um ficcionista chamado Carlos Heitor Cony –, virou referência das gerações posteriores por ter tido a clarividência de perceber que a geração de Pelé, Garrincha e companhia merecia a confiança do torcedor magoado pela derrota de 1950. Enquanto isso, os “entendidos”, como ele zombava, só tinham olhos para a raça uruguaia e o escrete húngaro. E, como Kenneth Tynan se deleitando com o teatro de atores como Laurence Olivier e John Gielgud (sim, tudo que nós críticos sonhamos é com uma “era de ouro”), o autor de Álbum de Família tratou de defendê-los sem hesitação.O que os diluidores que o citam o tempo todo não entendem é que tais conceitos e exaltações tinham sua razão de ser. Hoje o Brasil alterna o vira-latismo com o complexo de puro-sangue, de “povo eleito” pela mestiçagem racial para ser o melhor do mundo no ludopédio – noção sem menor consistência científica ou antropológica, a qual Nelson ajudou a estabelecer baseando suas idéias nas do irmão, que entendia mais de futebol e era estudioso e amigo de Gilberto Freyre. (Mario, autor de O Negro no Futebol Brasileiro, só não tinha o dom de Nelson para criar bordões como “príncipe etíope” e imagens como “sol de rachar catedrais”.) Daí a oscilação insana entre a nostalgia dos tempos de Pelé – que já faz 50 anos que foi convocado pela seleção brasileira pela primeira vez – e o oba-oba ufanista para qualquer um que trate bem a garotinha, como Ronaldinho e Robinho, ídolos vergados ao peso das comparações precoces e perversas.Agora o futebol brasileiro vive momento lamentável. Não é apenas a decadência ano a ano do campeonato nacional, explorado selvagemente por clubes corruptos cuja inépcia acaba de ser premiada pelo governo Lula com a tal Timemania. É também a fase de estiagem, em que as poucas revelações não bastam para a tão ansiada renovação; ainda que Dunga não seja técnico para a seleção, o elenco de que dispõe – principalmente sem Kaká – recomenda ceticismo. Aos poucos, quem sabe, os formadores de opinião vão se dar conta de que uma grande geração está chegando ao fim e que essa grande geração foi vítima de uma maledicência que Nelson jamais aprovaria. Quando comecei a escrever sobre futebol, há dez anos, foi em boa parte porque não entendia como se podia desprezar o talento de Ronaldo e de outros como Roberto Carlos, Rivaldo e Cafu, que chegaram a duas finais de Copa e se mantiveram entre os melhores do mundo por quase uma década. Pois então: eles já começam a dar saudades.Sou da geração que sofreu muito com a “tragédia do Sarriá”, há exatos 25 anos, quando a seleção de Telê, com Zico, Sócrates, Júnior e todos aqueles craques, perdeu para a Itália na Copa de 1982 – assunto que até o contista americano Robert Coover abordou num dos textos do livro Guia Cult para a Copa do Mundo. Sócrates era o maestro rebelde do meu time; Zico, meu maior ídolo brasileiro de infância; Júnior, o cara que eu imitava quando atuava na lateral. Eu tinha 12 anos e, quando vi a capa do Jornal da Tarde no dia seguinte, me identifiquei com aquele menino chorando. (Quando se tem 12 anos, é assim que se é. Por desgraça, muitos torcedores não conseguem se emancipar e caem no fanatismo que gera tantas brigas.) Depois que Romário e Bebeto romperam o jejum de Copas, foi bom ver outra boa geração surgir, adaptada ao futebol veloz e forte da atualidade, sem as doces cadências de outrora.Geração inferior à de Zico, mais inferior ainda à de Pelé? Sim, mas digna de admiração – e não de expiação patrioteira, como terminou sendo. Quando digo que o trabalho do comentarista não é prever resultados, me lembram que apostei na volta de Ronaldo em 2002. Não foi previsão; apenas divergi da opinião dominante (que até hoje subestima os dons técnicos do Fenômeno) e fiquei sozinho. Quando fui para a Copa de 2006, na Alemanha, fui com a sensação de que o time, além de ter problemas físicos e táticos e adversários europeus em bom momento, fracassaria também por causa do otimismo nele depositado, mais uma vez pelo recurso da comparação com a seleção de 1970... Infelizmente, continua a valer a máxima de que a seleção só triunfa quando desacreditada.Aprendo, em suma, mais sobre o Brasil ao observar o passionalismo em torno do futebol, de certa maneira, do que lendo centenas de livros. Por falar em livros, está lá em Os Sertões, de Euclides da Cunha, uma antecipação desse traço cultural, quando o escritor se revolta com a truculência do Exército, que precisou tomar uma surra estratégica de Canudos para cair na real. Mas não é para reafirmar nacionalidade que aprecio futebol. É pelo jogo em si, que poetas, cronistas, transmissões de TVs e rádios seguem tentando traduzir, nunca de maneira completa. O prazer do futebol é o de ver coisas difíceis e bonitas serem feitas pelo corpo humano – como os gregos antigos e Nietzsche já sabiam, conscientes de que o ser também se expande no fazer – e extrair disso um ânimo para a vida. Que bom que o futebol não tem importância.

sábado, 6 de junho de 2009

Woody

DESCONSTRUINDO HARRY
JOSÉ GERALDO COUTO

Se Woody Allen é frequentemente confundido com a "persona" cinematográfica que criou -um intelectual estabanado, frágil e neurótico, sempre às voltas com suas raízes judaicas e com a psicanálise-, "Desconstruindo Harry" vem discutir justamente isso: a confusão entre a arte e a vida.
No filme, Harry Block (Woody Allen) é um escritor em plena crise de impotência criativa -que se reflete também em impotência sexual.
Como se isso não bastasse, ainda enfrenta a hostilidade de ex-mulheres, amantes e parentes que não gostaram nada de se ver retratados, ainda que sob disfarces, nos livros do escritor.
Às vésperas de ser homenageado pela mesma universidade que o expulsou anos antes, Block (que em inglês significa "bloqueio") passa em revista a história de seus relacionamentos, tentando entender a origem de sua depressão.
Nessa investigação interior -ajudada, claro, por um psicanalista-, personagens de sua ficção misturam-se com as figuras "reais" que, direta ou indiretamente, os inspiraram.

Desconstrução narrativa
Não é por acaso que o verbo "desconstruir" aparece no título. O filme todo se organiza em torno dessa idéia.
À desconstrução psicanalítica, levada a cabo nas sessões de terapia, corresponde a desconstrução da ficção, tanto no que se refere às histórias escritas por Harry como ao próprio filme.
Não é apenas o fluxo narrativo que se despedaça em blocos -alternando presente, passado e histórias escritas por Harry. A descontinuidade se infiltra no interior de cada cena, de cada plano.
Já as primeiras imagens anunciam essa operação desconstrutora: a partir do mesmo enquadramento, revemos várias vezes a chegada de uma mulher (Judy Davis) à casa do protagonista. Em cada uma das vezes, a montagem "salta" etapas diferentes da ação, criando um movimento instável, nervoso, perturbador.
Se Bergman e Fellini foram a matriz inspiradora de inúmeros filmes de Woody Allen, desta vez a referência mais marcante parece ser o cinema cerebral e auto-reflexivo de Alain Resnais.
Sobretudo o Resnais de filmes que discutem diretamente a criação ficcional, como "Providence" e "A Vida É um Romance".
Allen pode não atingir o mesmo grau de ousadia e radicalidade, mas transplanta com graça e energia aquele tipo de experiência para o interior do grande cinema americano de entretenimento.
"Desconstruindo Harry", além do mais, pode ser visto como uma suma da obra de Woody Allen.
Há, por um lado, o melhor de sua cinematografia recente: o tratamento maduro e matizado das fraquezas humanas, o domínio narrativo, a precisa direção de atores (sempre muito bem escalados), a sofisticação estética.
Por outro lado, Allen parece ter-se sentido seguro o bastante para retomar a verve subversiva de seus primeiros filmes, com sua imaginação extravagante, seu erotismo quase vulgar, sua sátira corrosiva do "establishment" político e cultural americano.
Uma sequência impagável se passa num inferno de produção "trash" de terror, com mulheres lascivas entre labaredas.
Em outro momento, o angustiado Harry Block pergunta a uma prostituta negra (Hazelle Goodman) se ela já ouviu falar em buracos negros. A resposta dela é obscena e deliciosa.
A passagem mais inspirada do filme -a história do ator (Robin Williams) que fica "fora de foco" na vida real- concilia o "jovem Woody Allen" e o "Woody Allen maduro": a imaginação sem freios do primeiro com o requinte técnico que permite concretizá-la.
O tema do judaísmo, recorrente na obra do diretor, nunca teve um tratamento tão direto quanto na cena em que Harry Block vai visitar sua irmã fanática.
Assim como Harry Block, Woody Allen talvez seja "alguém que não funciona direito na vida, mas funciona muito bem na arte".

Allen