Na remota década de 60, todos os dias, no final da tarde, uma cambada de moleques entanguidos plantava-se à porta da casa de dona Purcina, no bairro Aldeia, à espera da ração de bola. Éramos quase todos do mesmo tope e todos da mesma cor: marrom-descaso. Integravam a cabroeira: Cleto, Valdemar, Paredão, Tonico, Berto, Zé do Jaburu, Orlando da Bela, Nivaldo, Walter do Candinho, Pedro e Solimar. Eventualmente, apareciam no terreiro: Marcelo Castro e Antônio Macedo, os dois únicos bem-nascidos do bando. Os outros éramos xerém. À época, bola era produto raro e caro. Muitas vezes, disputamos rachas animadíssimos com prosaicas bexigas de boi ou bolinhas de meia. No dia em que comprei minha primeira bola de borracha, uma autêntica “casco-de-peba”, não consegui me concentrar na aula: meu pensamente não se desgrudava dela. Parafraseando Bandeira, aquela bolinha foi minha primeira amante. E como o porquinho-da-índia do Poeta, ela não fazia o menor caso dos meus acenos e carinhos: preferia os chutes certeiros de Paredão e Solimar, o que me deixava roído de ciúmes...
Perdidos naquela aldeia remota, onde o rádio era um luxo só permitido a dois ou três ricaços, tínhamos uma verdadeira veneração pelo único time que conhecíamos: o do Pelé. Qualquer um de nós sabia de cor e salteado a escalação daquela máquina de destroçar adversários: Gilmar, Mauro, Dalmo, Lima, Zito, Melgálvio, Calvet, Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe. À época, o time da Vila não tinha o menor pejo em pegar quatro gols numa partida; Pelé, Coutinho e Pepe, faziam cinco ou seis, dependendo do humor de cada um. Houve um dia, porém (14 de novembro de 63), em que o Milan cruzou o caminho do Santos para tirar-lhe o título de bi-campeão Interclubes. Para desbancar a equipe da Vila, o time italiano contava com a cumplicidade e a competência de dois brasileiros: Mazola e Amarildo, também conhecido como “o possesso”. Para os mais jovens, um lembrete: Amarildo fora o substituto de Pelé na copa de 62 da qual saiu consagrado. Era um centroavante rompedor e perigoso. Não bastasse isso, o Santos, naquele dia, não podia contar com Pelé, Zito e Calvet. 130 mil torcedores, no Maracanã, assistiram, consternados, a um primeiro tempo em que o Santos levou dois gols e não fez nenhum. Nos mais antigos, bateu a síndrome de macaranaço, medo de que se repetisse ali o que ocorrera em 1950, quando perdemos a copa do mundo para o Uruguai. Ledo engano. Se os italianos tinham um “possesso”, o Santos tinha um “alucinado”, Almir Pernambuquinho que, literalmente, comandou a reação e a virada sensacional. Vencemos por 4X2. Um dia para não ser esquecido.
Por que me lembrei disso agora? É escusado explicar. Com a mesma angústia vivida há 47 anos, vi o time dos “Meninos da Vila”, com três jogadores a menos, segurar a fúria do Santo André, na tarde do dia 2 de maio. Neymar, Robinho e Ganso fizeram a diferença. Finda a peleja, só me faltou a companhia dos moleques da minha aldeia, notadamente do Paredão, para que a alegria fosse completa. Um dia para ser lembrado, mesmo por um flamenguista juramentado como eu.
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