Por que gosto de futebol
fonte: O Estado de São Paulo
08 de julho de 2007
O comentário pode ser com um muxoxo, “Ah, futebol não tem importância”, e normalmente vem de alguém metido a intelectual, que também desdenha TV e MPB; só não sei como pode captar um pouco que seja da cultura de seu país, embora pretenda. Não que esses assuntos fiquem mais interessantes quando viram teses em nossas universidades, como têm virado. Mas não é disso que estou falando. Estou falando de João Cabral de Melo Neto escrever poema para Ademir da Guia, “ritmo morno (...) atando o mais irrequieto adversário”; de nosso maior dramaturgo, Nelson Rodrigues, ter sido cronista de futebol por tantos anos; de Chico Buarque compor canção para o tema ou então enfiá-lo em versos como “Quem que te mandou comprar conhaque/ Com o tíquete que te dei pro leite?/ Quieta, que eu quero ouvir Flamengo e River Plate”, com aliterações e rimas de craque.Se o futebol entra dessa forma no universo cultural, é porque é bem mais do que um evento de mídia ou afirmação da pátria. Sua atração vem do jogo em si. Arthur Nestrovski, crítico e músico, disse certa vez que tirava inspiração para sua escrita de uma “certa tensão” com que Falcão batia na bola. O poeta e cronista Paulo Mendes Campos dividiu os times em “épicos” (Flamengo), “clássicos” (Fluminense) e “imprevisíveis” (como o seu Botafogo). Isso tudo começou quando um grupinho de alunos de Cambridge teve a idéia de chutar uma bola num portal e intimou a turma ao lado para disputar uma partida. Por ser com os pés, o futebol é menos previsível, mais dramático, e se há mais erros do que em outros esportes também há mais beleza, pela força e pelo efeito que se podem imprimir na esfera, levando à mistura de combate e coreografia. Nenhum outro esporte se parece tanto com a vida – o heróico e o patético tão próximos, tão sujeitos às contingências de uma narrativa que se reinventa por 90 minutos. Por isso nenhum outro se presta tanto às vicissitudes da opinião. Nelson, que está sendo homenageado na Flip e tem o famoso texto sobre o “complexo de vira-lata” incluído na antologia As Cem Melhores Crônicas Brasileiras (Objetiva), assim como seu irmão Mário Filho – cujo estilo influenciou um ficcionista chamado Carlos Heitor Cony –, virou referência das gerações posteriores por ter tido a clarividência de perceber que a geração de Pelé, Garrincha e companhia merecia a confiança do torcedor magoado pela derrota de 1950. Enquanto isso, os “entendidos”, como ele zombava, só tinham olhos para a raça uruguaia e o escrete húngaro. E, como Kenneth Tynan se deleitando com o teatro de atores como Laurence Olivier e John Gielgud (sim, tudo que nós críticos sonhamos é com uma “era de ouro”), o autor de Álbum de Família tratou de defendê-los sem hesitação.O que os diluidores que o citam o tempo todo não entendem é que tais conceitos e exaltações tinham sua razão de ser. Hoje o Brasil alterna o vira-latismo com o complexo de puro-sangue, de “povo eleito” pela mestiçagem racial para ser o melhor do mundo no ludopédio – noção sem menor consistência científica ou antropológica, a qual Nelson ajudou a estabelecer baseando suas idéias nas do irmão, que entendia mais de futebol e era estudioso e amigo de Gilberto Freyre. (Mario, autor de O Negro no Futebol Brasileiro, só não tinha o dom de Nelson para criar bordões como “príncipe etíope” e imagens como “sol de rachar catedrais”.) Daí a oscilação insana entre a nostalgia dos tempos de Pelé – que já faz 50 anos que foi convocado pela seleção brasileira pela primeira vez – e o oba-oba ufanista para qualquer um que trate bem a garotinha, como Ronaldinho e Robinho, ídolos vergados ao peso das comparações precoces e perversas.Agora o futebol brasileiro vive momento lamentável. Não é apenas a decadência ano a ano do campeonato nacional, explorado selvagemente por clubes corruptos cuja inépcia acaba de ser premiada pelo governo Lula com a tal Timemania. É também a fase de estiagem, em que as poucas revelações não bastam para a tão ansiada renovação; ainda que Dunga não seja técnico para a seleção, o elenco de que dispõe – principalmente sem Kaká – recomenda ceticismo. Aos poucos, quem sabe, os formadores de opinião vão se dar conta de que uma grande geração está chegando ao fim e que essa grande geração foi vítima de uma maledicência que Nelson jamais aprovaria. Quando comecei a escrever sobre futebol, há dez anos, foi em boa parte porque não entendia como se podia desprezar o talento de Ronaldo e de outros como Roberto Carlos, Rivaldo e Cafu, que chegaram a duas finais de Copa e se mantiveram entre os melhores do mundo por quase uma década. Pois então: eles já começam a dar saudades.Sou da geração que sofreu muito com a “tragédia do Sarriá”, há exatos 25 anos, quando a seleção de Telê, com Zico, Sócrates, Júnior e todos aqueles craques, perdeu para a Itália na Copa de 1982 – assunto que até o contista americano Robert Coover abordou num dos textos do livro Guia Cult para a Copa do Mundo. Sócrates era o maestro rebelde do meu time; Zico, meu maior ídolo brasileiro de infância; Júnior, o cara que eu imitava quando atuava na lateral. Eu tinha 12 anos e, quando vi a capa do Jornal da Tarde no dia seguinte, me identifiquei com aquele menino chorando. (Quando se tem 12 anos, é assim que se é. Por desgraça, muitos torcedores não conseguem se emancipar e caem no fanatismo que gera tantas brigas.) Depois que Romário e Bebeto romperam o jejum de Copas, foi bom ver outra boa geração surgir, adaptada ao futebol veloz e forte da atualidade, sem as doces cadências de outrora.Geração inferior à de Zico, mais inferior ainda à de Pelé? Sim, mas digna de admiração – e não de expiação patrioteira, como terminou sendo. Quando digo que o trabalho do comentarista não é prever resultados, me lembram que apostei na volta de Ronaldo em 2002. Não foi previsão; apenas divergi da opinião dominante (que até hoje subestima os dons técnicos do Fenômeno) e fiquei sozinho. Quando fui para a Copa de 2006, na Alemanha, fui com a sensação de que o time, além de ter problemas físicos e táticos e adversários europeus em bom momento, fracassaria também por causa do otimismo nele depositado, mais uma vez pelo recurso da comparação com a seleção de 1970... Infelizmente, continua a valer a máxima de que a seleção só triunfa quando desacreditada.Aprendo, em suma, mais sobre o Brasil ao observar o passionalismo em torno do futebol, de certa maneira, do que lendo centenas de livros. Por falar em livros, está lá em Os Sertões, de Euclides da Cunha, uma antecipação desse traço cultural, quando o escritor se revolta com a truculência do Exército, que precisou tomar uma surra estratégica de Canudos para cair na real. Mas não é para reafirmar nacionalidade que aprecio futebol. É pelo jogo em si, que poetas, cronistas, transmissões de TVs e rádios seguem tentando traduzir, nunca de maneira completa. O prazer do futebol é o de ver coisas difíceis e bonitas serem feitas pelo corpo humano – como os gregos antigos e Nietzsche já sabiam, conscientes de que o ser também se expande no fazer – e extrair disso um ânimo para a vida. Que bom que o futebol não tem importância.
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