DESCONSTRUINDO HARRY
JOSÉ GERALDO COUTO
Se Woody Allen é frequentemente confundido com a "persona" cinematográfica que criou -um intelectual estabanado, frágil e neurótico, sempre às voltas com suas raízes judaicas e com a psicanálise-, "Desconstruindo Harry" vem discutir justamente isso: a confusão entre a arte e a vida.
No filme, Harry Block (Woody Allen) é um escritor em plena crise de impotência criativa -que se reflete também em impotência sexual.
Como se isso não bastasse, ainda enfrenta a hostilidade de ex-mulheres, amantes e parentes que não gostaram nada de se ver retratados, ainda que sob disfarces, nos livros do escritor.
Às vésperas de ser homenageado pela mesma universidade que o expulsou anos antes, Block (que em inglês significa "bloqueio") passa em revista a história de seus relacionamentos, tentando entender a origem de sua depressão.
Nessa investigação interior -ajudada, claro, por um psicanalista-, personagens de sua ficção misturam-se com as figuras "reais" que, direta ou indiretamente, os inspiraram.
Desconstrução narrativa
Não é por acaso que o verbo "desconstruir" aparece no título. O filme todo se organiza em torno dessa idéia.
À desconstrução psicanalítica, levada a cabo nas sessões de terapia, corresponde a desconstrução da ficção, tanto no que se refere às histórias escritas por Harry como ao próprio filme.
Não é apenas o fluxo narrativo que se despedaça em blocos -alternando presente, passado e histórias escritas por Harry. A descontinuidade se infiltra no interior de cada cena, de cada plano.
Já as primeiras imagens anunciam essa operação desconstrutora: a partir do mesmo enquadramento, revemos várias vezes a chegada de uma mulher (Judy Davis) à casa do protagonista. Em cada uma das vezes, a montagem "salta" etapas diferentes da ação, criando um movimento instável, nervoso, perturbador.
Se Bergman e Fellini foram a matriz inspiradora de inúmeros filmes de Woody Allen, desta vez a referência mais marcante parece ser o cinema cerebral e auto-reflexivo de Alain Resnais.
Sobretudo o Resnais de filmes que discutem diretamente a criação ficcional, como "Providence" e "A Vida É um Romance".
Allen pode não atingir o mesmo grau de ousadia e radicalidade, mas transplanta com graça e energia aquele tipo de experiência para o interior do grande cinema americano de entretenimento.
"Desconstruindo Harry", além do mais, pode ser visto como uma suma da obra de Woody Allen.
Há, por um lado, o melhor de sua cinematografia recente: o tratamento maduro e matizado das fraquezas humanas, o domínio narrativo, a precisa direção de atores (sempre muito bem escalados), a sofisticação estética.
Por outro lado, Allen parece ter-se sentido seguro o bastante para retomar a verve subversiva de seus primeiros filmes, com sua imaginação extravagante, seu erotismo quase vulgar, sua sátira corrosiva do "establishment" político e cultural americano.
Uma sequência impagável se passa num inferno de produção "trash" de terror, com mulheres lascivas entre labaredas.
Em outro momento, o angustiado Harry Block pergunta a uma prostituta negra (Hazelle Goodman) se ela já ouviu falar em buracos negros. A resposta dela é obscena e deliciosa.
A passagem mais inspirada do filme -a história do ator (Robin Williams) que fica "fora de foco" na vida real- concilia o "jovem Woody Allen" e o "Woody Allen maduro": a imaginação sem freios do primeiro com o requinte técnico que permite concretizá-la.
O tema do judaísmo, recorrente na obra do diretor, nunca teve um tratamento tão direto quanto na cena em que Harry Block vai visitar sua irmã fanática.
Assim como Harry Block, Woody Allen talvez seja "alguém que não funciona direito na vida, mas funciona muito bem na arte".
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