–Tomo Stendhal como exemplo: o desejo de ser invisível, ver sem ser visto. Em criança, eu me distraía assim, sobretudo depois que assisti "O Homem Invisível", com Claude Rains. Stendhal não viu o filme nem tomou conhecimento do livro de H. G. Wells, mas tentou ser invisível: adotou mais de 20 pseudônimos, com um deles ficando imortal.
Até na hora da morte, ao redigir seu epitáfio, ele procurou blefar inventando um novo nome e fazendo-se passar por milanês. Coisas de gênio.
Pois tive meu momento de Stendhal: no último domingo, vi o Millôr andando em Ipanema com sua cachorra (ou cachorro: à distância não dá para perceber, homens e cães são difíceis de identificação em tempos de bissexualidade e Carnaval).
Vi e não fui visto, pude saborear a cena: a cachorrinha de Millôr é branca, aristocrática, faz um gênero próximo ao das peruas, só que, em sendo cachorra, sendo perua é um charme suplementar. Caminha à frente, em verdade vos digo, não é Millôr quem leva a cachorra, é a cachorra que leva o Millôr.
Andam apressados, Millôr vai de cabeça baixa, concentrado e denso. A cachorra empina o focinho para curtir a própria glória, desfila como um destaque de escola de samba, sabe que provoca admiração e pasmo, branca e fofa como um doce de açúcar, as perninhas ligeiras puxando o submisso dono que a segue.
Depois de tanta vida e tanta luta, como a Marta do Evangelho, Millôr escolheu a melhor parte. Nada de ir atrás dos outros na arte, na política, no complicado ofício de viver. O mais sábio é não ser liderado por ningém e nada, seguir ou perseguir um pedaço doce de açúcar, nacarado e fofo, fragilidade que desmancha na boca.
Comecei a crônica com Stendhal. O lugar-comum das citações literárias remeteria ao início de um de seus romances, o personagem que assistiu a batalha de Waterloo e só mais tarde ficou sabendo que presenciara um acontecimento histórico. Eu poderia repetir o personagem de Stendhal, mas acho que tive esperteza bastante para guardar a memória de um domingo em Ipanema: eu vi o Millôr!
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