JOÃO PEREIRA COUTINHO
Woody Allen, o elegante
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BRASIL, COMO eu te invejo! Leio na Folha que Rio e São Paulo se preparam para receber Woody Allen . Não o próprio, por enquanto. Mas a obra completa do próprio, mais de 40 longas, na retrospectiva "A Elegância de Woody Allen", no CCBB.
Sou suspeito. Escrevi texto para o catálogo, onde procuro traçar, brevemente, o pensamento filosófico de Woody Allen. Alguns acadêmicos fazem má cara com a pretensão e chutam Woody para as margens da filosofia "respeitável".
Perdoo-lhes, porque eles não sabem o que fazem: a filosofia não é coutada exclusiva de universidades e teses de doutorado. É possível pensar em imagens e com imagens.
E, no caso de Woody Allen, pensar os mesmos temas, oferecendo recorrentemente as mesmas respostas. Que são, confissão pessoal, os meus temas. E as minhas respostas.
O tema é clássico: qual o sentido da vida quando a morte e o esquecimento são certos? Não sei quando foi que a inquietação se instalou na minha cabeça pela primeira vez: teria uns dez anos quando a extinção se tornou clara e inevitável. E, com a certeza, o sentimento de frustração que vem e cobre tudo o que fazemos, sentimos, pensamos.
Eis o dilema que Shelley apresenta no seu poema "Ozymandias", a descrição de um viajante que se depara com a estátua do antigo faraó; e, na base da estátua, a inscrição plena de vaidade humana: "O meu nome é Ozymandias, rei dos reis:/ Contemplem as minhas obras, ó poderosos, e desesperai!".
Palavras ridículas e vãs. Milênios depois, quem desespera com as obras esquecidas do esquecido rei dos reis? Somos pouco. Somos nada.
Ozymandias aparece e reaparece, sob várias roupagens, nos filmes e nos personagens de Woody Allen. Umas vezes, de forma explícita: em "Memórias", o psicanalista explica que o seu paciente, interpretado por Woody Allen "lui même", sofria de "Melancolia de Ozymandias", uma incapacidade de apreciar a vida pela certeza da extinção final. Outras vezes, Ozymandias surge de forma pícara: será possível esquecer Mickey, o hipocondríaco de "Hannah e Suas Irmãs", que é salvo do torpor suicidário por um filme dos irmãos Marx?
O momento é epifânico. Não apenas em "Hannah...", mas na obra de Allen: num universo sem sentido e marcado pela radical ausência de Deus, restam aos homens banalidades mortais. "Banalidades", no sentido próprio do termo: as banalidades salvíficas que o personagem Isaac, em "Manhattan", debita para um gravador; os filmes dos irmãos Marx, é claro; mas também o talento desportivo de Willie Mays; uma sinfonia de Mozart; os filmes de Bergman; os romances de Flaubert; o rosto da mulher que amamos.
É pouco? Kierkegaard diria que sim: o "estádio estético" não garante o nível de realização humana que só o "salto" da fé religiosa permite.
Curiosamente, e nos últimos anos, Woody Allen tem refletido sobre essa hipótese: sobre os limites do estético. Ou, em alternativa, sobre a imperiosa necessidade de fundamentação ética. E não é por acaso que três dos últimos filmes ("Crimes e Pecados", "Match Point" e "O Sonho de Cassandra") partem da mesma pergunta arcana: num mundo sem Deus, tudo é permitido? Os três filmes, que a ignorância do tempo interpreta como repetições sem grande originalidade, devem ser vistos em conjunto. Porque eles vão adensando e amadurecendo uma resposta. Gradualmente.
Em "Crimes...", o personagem de Martin Landau mata e liberta-se da culpa com gélida indiferença.
Em "Match Point", sabemos que a sorte iliba o criminoso de uma condenação formal, mas não da condenação última intransponível e inegociável: a condenação da sua própria consciência, que será eternamente assombrada pelo cadáver da amante (Scarlett Johansson).
Finalmente, em "O Sonho de Cassandra", não há salvação possível: como no melhor da tradição rabínica, atos nefandos trazem apenas consequências nefandas.
Isso significa que Woody Allen, no final da vida, se reconcilia com a religião da sua infância? Não direi tanto. Evoluindo do "estádio estético" mas recusando o "estádio religioso", a posição de Woody Allen é uma posição secular, humanista e, ainda nas categorias de Kierkegaard, intermédia. Uma posição fortemente ética, que dispensa Deus mas nunca a consciência dos homens. Para um pessimista crônico, melhor é impossível.
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